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Iceland 

1. Diante de paredes oblíquas, caminhando em meio à névoa, desperto dos sentimentos irreais, nunca absolutos, imprevistos.

As imagens projetadas no pensamento. As cores das superfícies laminadas das caixas, os objetos na ponta do píer, as paredes de ferro dos navios próximas à plataforma.

O cais de Reykjavík é a materialização de um labirinto extenso, distendido, se parece a um postulado algébrico decomposto, a uma seqüência geométrica incompleta, uma série de pequenos retângulos irregulares.

Um modelo de cais formado a partir de outros modelos, de outros cais.

Elementos pintados com cor vermelha, visíveis, conformados.

Diante de nós uma construção maior, uma imagem. Dentro de nós outra imagem menor, percebida em poucos detalhes. Construções menores a partir de construções maiores, palpáveis, sólidas.

 

Tudo se parece com o que deve ser.

 

2. Nesse teto tranqüilo onde fremem as ondas, o mar, os rastros, as ramas, nuvens cinzas sob o manto azul do céu.

Onde poderiam então estar ocultas todas essas sugestões?

Nas fendas acinzentadas, no chão coberto pelo gelo, na luz sobre a água parada, no piso escuro.

Dentro dos barcos, nos buracos vaporosos, escurecidos pela fuligem, pigmentos mortos resultantes da química poluente, oleosa - a diluição, o fim dos atos.

Metamorfoses da superfície do oceano. A solidificação dos detritos no fundo do mar.

Bulícios a bordo. Dias e noites alternados por vigílias amorosas, sexuais, penetrações anais e orais de marinheiros sem mulher, sem os complementos antinaturais.

Parado sobre a calçada de pedra, as rampas de madeira, vê os becos, os barcos afundando no gelo.

A permanência na orla teria sido por alguns minutos ou por algumas horas.

 

3. Todos estes navios assim comovem-me como se fossem outra coisa
E não apenas navios, navios indo e vindo. (...)
E os navios vistos de perto, mesmo que neles não se vá embarcar,
Cheirando à untada mistura metálica e marítima de tudo aquilo -
Os navios vistos de perto são outra coisa e a mesma coisa,
Dão a mesma saudade e a mesma ânsia doutra maneira.
 (“ode marítima”, fernando pessoa)

 

Parado à beira do cais, o descompasso dos sons do corpo se misturam aos sons do vento.

 

A vontade, o desejo contido, comprimido em seu termo, nas palavras, nas imagens dos navios.

 

4. Contempla e desembaraça os fios emaranhados, o cérebro dilacerado, as membranas aparentes.

Na vitrine, a máscara mortuária, livros velhos, o vidro manchado pela neve escorrida.

A construção de um cais irreal, a partir de algum modelo, herdeiro de outros modelos. Os cais noruegueses ou das costas inglesas.

O antigo cais de Reykjavík se assemelha a um quadrilátero reduzido, limitado, ocupa um pequeno espaço entre a orla e as cordilheiras.

Os ruídos dispersos misturados aos do vento. Ruídos materiais rompem o silêncio da manhã islandesa.

Na baía, grandes navios carregados de contêineres trazem mercadorias do continente. Verduras, frutas acondicionadas, eletrodomésticos, plásticos poluentes, sapatos.

Alçam-se os guindastes, movem-se, ornamentos tingidos de óleo sujo. Grandes setas apontam para o tecido azul - sentido e direção na manhã, a morte no mar frio. Logo adiante, estivadores atravessam uma ponte suspensa.

A viragem dos cabos cobertos de óleo, elementos que se movimentam na paisagem, na orla. As encostas rígidas, onde próximos navegam barcos cautelosos. O trajeto em desvio obrigatório dos grandes blocos duros, mais além, no mar.

Desabrochando com a manhã, as flores no céu, as nuvens negras ocasionais, a luz azulada.

 

5.  A certos passos, em direção ao vento,

como se marcássemos o tempo,

Os passos soltos no gelo, ou os pés nos

degraus da escada; percebe-se

a seqüência numérica de duplos, ímpares

ou pares.

 

Modos nítidos, avessos, inversos, como se decompuséssemos em lógicas almejadas alternâncias.

As imagens/palavras que aos poucos colocamos lado a lado.

Imagens/palavras que se fundem, uma a uma, se organizam nessa superfície de papel, corrompidas por um sentimento-raiz.

O que posso ver se modifica na medida em que o vejo.

 

6. Nada se parece com o que sinto ser, o que posso ter, o que devo sentir. Nada se parece com o que devo ver.

O que vejo é o que posso ter.

Os olhos seguem um traçado, vemos imagens que às outras se misturam. Perseguem as coisas até encontrá-las.

A tudo atento, ao meio corte dos cones, entre o ar e a água. O branco e o vermelho, nos reflexos alternados das tintas, na superfície de invólucros comuns.

Afilados os ferros, em forja geométrica, submergindo no tecido branco.

Amargo as cinzas que nos induzem a soluções práticas em tardes antigas.

Sozinho, no cais deserto, a esta manhã...
Olho o lado da barra, olho o Indefinido,
Olho e contenta-me ver.

Tudo se parece com o que deve ser,

o que posso ver, o que devo sentir,

os navios na superfície do cais,

no mar vejo o que posso ter

 

Nada se parece com o que sinto ver,

o que posso ter, o que devo sentir.

Nesse teto tranqüilo onde fremem

as ondas, espelhos, olhos, rastros, orlas.

 

As nuvens sob o manto azul do céu,

 

nada se parece com o que devo ver.

 

O que vejo é o que posso ter,

que posso ser, que devo sentir

 

Tudo se parece ao que devo ser.

 

Tento, embora, em vão,

Que se assemelhem,

de um lado e do outro,

Os navios sobre a

superfície do mar.

 

Tudo se parece com o que devo ser

Percebo que posso ver,

que posso ter, que tento sentir.

 

 

*

Islândia

Carlos Rezende

Fotografias analógicas, porto de Reykjavík, Islândia.

 Capítulo extraído do livro “Os Véus, A.” C.R. Edição Autoral, 2013.

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